Tuesday, 26 October 2010

[?] Ep. 2

a 452Km do ponto de clausura

  1. Uma ilusão
Planeta “Terra”, Pólo Sul
Assumimos a forma humana e descemos do vaivém. Inicia-mos a caminhada os 5: eu, o Hans, o Franz, o Amílcar e Holy Cat ®. Começamos por procurar vestígios de actividade não casual e indícios de livre arbítrio, tal como nos era pedido na listagem de procedimentos entregues pelo Chefe. Examinava-mos cautelosamente o solo branco luzidio com as super-lentes. Hans reparou numa impressão de massa sobre a neve. Holy aproximou-se de imediato para observar:
     - “Hmmm… parece-me uma pegada.”
     - “Uma quê?!” – perguntei.
     - “Uma PE-GA-DA. É uma marca de acção sobre uma superfície sólida não compacta ou de nível 2-macro. Reflecte a estadia ou passagem de um ser no espaço, e se por ventura se repetir nesse mesmo, indica uma trajectória, ou seja, uma ilusão.
Ficamos presos ao terreno, estáticos e instáveis, a fitar atentamente Holy e a sua explicação repentina. O seu conhecimento dos manuais ultrapassava-nos. Já os tinha-mos lido todos, fazia parte da nossa formação, mas era extraordinária a maneira como ele tinha toda a informação disponível num determinado momento. Não seria nada que um rudimentar processador terrestre não pudesse fazer recorrendo a uma base de memória, mas em Holy havia algo mais: uma interpretação.
Seguimos o rasto na neve. Eram formas semelhantes a triângulos mas recortadas em três pontos na base, e aos pares. Amílcar tinha o rosto humano pesado. Não dizia uma palavra desde que o Chefe explicara o significado destas formas invulgares. Franz parecia preocupado com ele. Toda esta situação era nova e imprevisível para nós. Não houve nada deixado ao acaso nos nossos ensinamentos, excepto o próprio acaso. Novos rastos de pegadas apareciam a convergir com o que seguíamos e não demorou muito até que fossem milhares. Holy andava agora mais depressa, os intervalos na sua respiração eram cada vez mais curtos. Amílcar piorou: começou a mudar de cor. Franz ao reparar nisto parou de frente para ele e ficaram os dois quietos a olharem um para o outro. Isto motivou a paragem do grupo. Holy parou sem se virar. Estava de costas para nós em silêncio. Franz tremia e Hans ajoelhou-se. Amílcar começou a olhar-nos desconfiadamente. Estava totalmente vermelho e sentia-se frágil. De repente começou a correr de volta ao vaivém. Hans e Franz foram atrás dele, Holy rodou a cabeça e disse: “queres voltar à quarentena para que seja tudo como foi um dia em Nebulosa, ou segues as pegadas?”. Fiquei mudo. Não sabia o que dizer. Holy continuava na mesma posição aguardando a minha resposta. “Mas… Chefe… eu, eu…” – disse, incapaz de formar uma frase coerente. Holy sorriu e rodou a cabeça para a frente iniciando a marcha lentamente.


  1. Bom grado

Não sei porque o fiz. Ou não o quero dizer. Mas foi a opção que tomei. Não foi a opção confortável. Não foi o que me ensinaram. Foi o que fiz e foi pelo que paguei. E paguei de bom grado.


  1. A conversa

Forças Especiais fotografadas em Nebulosa (FEN), equipadas com poderosas metralhadoras de raios “gama+7.2Ghz”


O melhor dos navegantes de nebulosa continuou a sua caminhada como se nada fosse. Eu esforçava-me por acompanhar o seu ritmo acelerado. Ouvi o arranque ruidoso do vaivém ao longe no horizonte. Não sabia o que se passara e Holy não me parecia minimamente interessado em saber. O que tinha por certo é que estávamos sem meio de transporte, num planeta praticamente desconhecido mas com vida inteligente, e provavelmente dentro de pouco tempo teríamos forças especiais de Nebulosa no nosso encalço. O frio e os quilómetros feitos a investigar as pegadas tinham-me deixado numa espécie de sonambulismo. As ordens que me eram endereçadas eram executadas fazendo o menor uso cerebral possível, e todas as sobras do intelecto caíam nas interpretações da experiência e na compreensão das palavras de Holy Cat. Este estava agora tão vermelho que emitia uma luz própria, florescia numa paisagem de candura e solidão gélida, ainda assim tão seguro de si próprio que tinha uma expressão utópica congelada na face cheia de bigodes.
De um momento para o outro as pegadas desapareceram diante os nossos olhos. De milhares de marcas não se vislumbrava nem uma sequer. Holy e eu observava-mos o solo estupefactos quando ouvimos um som vindo de trás de uma rocha:

     - “Hrrrrr!...”
     - “ ?!!!”
     - “Visitantes de outro mundo…” – disse e saiu de trás da rocha, “…voltai para trás de onde os sonhos vos trouxeram por via de pensamentos conscientes ou por via incerta, este é o planeta terra.”
      - “Quem és tu? O que dizes?” – perguntou Holy. 
     - “Nós somos os defensores deste corpo celeste, por isso habitamos esta entrada. O meu nome é Corcódias e sou o sétimo na descendência de uma longa linhagem secular de guardiões.”

E continuou com um longo monólogo agitando uma espécie de barbatanas-asa que tinha em vez de braços. Depois disse-nos que na terra os chamavam de “Pinguíns” e que só se deixavam ver no Hemisfério sul para poderem controlar melhor todas as entradas dando o menos possível nas vistas. Contou-nos que em pequeno um barco se afundara ao longo daquela costa de gelo maciço e que largara um rasto de sangue negro que apanhou muitos peixes e que por isso se viram forçados a voar às escondidas até África para caçarem, correndo aquele que foi o maior risco de sempre na história dos guardiões Pinguíns. Perguntei de quem se escondiam e porquê. O animal olhou-me nos olhos e fez um periodo de silêncio.
     - “Por causa dos homens… são demasiado inseguros e frágeis e por isso tem de pensar que na ordem natural são os primeiros.”
     - “ E porque os protegem vocês?” – perguntou Holy.
     - “Nós protegemo-nos a nós mesmos, o homem decide o seu grau de envolvimento. Quando nascem, é lhes dado tudo, muito mais do que alguma vez um guardião teve. Depois a infância foge-lhes e com ela o seu senso. São como robots coleccionadores. No entanto, já o meu Avô guardião Pluma de Neve dizia que haviam humanos que para não perderem aquela oferta dos céus, a guardavam numa caixinha e a escondiam num lugar seguro… nunca nenhum de nós encontrou tal caixa, mas o mito, tal como todos os verdadeiros sonhos, persiste. “
Os olhos de Holy iluminaram-se ao ouvir aquelas palavras, sorria silenciosa e constantemente, e projectava a sua imagem vermelha na neve. O pinguim fitou-o e pediu-lhe que aguardasse. De baixo de uma asa retirou um pedaço de papel com desenhos e indicações para Holy.
     - “Então tu és o ser de luz própria, a roda que gira pelo seu mesmo movimento, o pêndulo contínuo. Toma isto, esperamos muito tempo por ti.”
     - “Também esperei muito. Agora chegou a hora.” – disse Holy Cat e guardou o papel na sua bolsa enquanto nos preparava-mos para recomeçar o trajecto, fosse para onde fosse.

Estávamos no Pólo Sul, sem direcções, sós num manto branco, e Holy radiava intensamente.


Estivemos numa imensidão gelada, um lago cristalino da memória, e nesses dias a sós, o mundo não era nada e o número que fazíamos cintilava intensamente, como uma estrela, como um quasar, pulsando energia através do espaço,

e através do tempo.


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