Tuesday 26 October 2010

[?] Ep. 3

a 303Km do ponto de Clausura


            Em Nebulosa prosseguiam as alegações e perícias finais em torno do processo de Holy Cat, e este até já tinha, mesmo sem estar ao corrente do que quer que fosse, alguém para o defender frente ao júri. Este tipo de defesa só era permitido a indivíduos com um grau social especial. Na terra, Holy passava ao lado de tudo isto, Nebulosa deixara de existir enquanto realidade concreta na sua mente. Mas por vezes recordava-se e punha-se a pensar e a imaginar Nebulosa. Da mesma forma que em Nebulosa raciocinava sobre mundos longínquos e seres estranhos, secretamente, no seu caixote, quando ainda era o mais respeitado dos gatos Chefes Navegantes.
Assim que viramos costas ao pinguim, o Chefe retirou o seu disfarce humano. O vermelho brilhante ofuscou-me. Holy disse que me habituasse pois daqui em diante não mais usaria tal prótese. Disse que o seu corpo, por si só, estava a responder e a mutar, e que há muito esperava e sabia disto. Holy pedira-me para ler seus apontamentos sobre a terra para que me inteirasse o máximo possível da sua estrutura ético-social, biológica e emocional. Depois de o fazer questionei Holy relativamente à sua aparência, pensei que os humanos se poderiam assustar ao verem um gato de cor vermelha, e ainda para mais um que fala… Holy disse-me: “Aquilo que os humanos vêm só depende deles, do quanto querem ver ou do que querem ver. Quando fecharem os olhos não é um ser vermelho que romperá pelas suas memórias, se assim o permitirem claro. O vermelho é uma ilusão. As palavras são um veículo blindado mas de natureza química instável - sempre em mutação - quando chegam ao ouvido expectante, provavelmente chegam já com outra face. No silêncio, no mais profundo do eu, quando a poeira acalma, não há ouvido nem caminho, são as palavras que vem por vontade própria ter connosco, umas vezes para nos reconfortar da solidão, outras como se nos quisessem matar. Trouxe-te isto de Nebulosa, é um degrau e como tal to ofereço porque te vejo em frente a esse degrau, como se quisesses subir. Porque te sei e porque te trouxe comigo sabendo que sentirias o impulso, preparei-o para ti, pois teus olhos já me contaram a tua história logo no primeiro dia, só tive de a ouvir.”
Recordo suas palavras como uma ave recorda os trajectos migratórios: como se comigo nascessem. Mais tarde descobri que eu nasci através delas. Holy retirou de dentro do seu diário de bordo uma folha solta com uma colecção de palavras ambíguas:
Sonho sempre que haverá algo ou alguém que espera minha chegada a casa. E chego. E no princípio não havia nada. Agora dou de caras com uma amargura que me fica presa à língua, até às entranhas. Estúpidas tripas minhas. Na estrada o sol a morrer no fundo, a cegar-me. Transpiro com o ruído das pedras debaixo dos pés: um crac-craque constante nas sapatilhas e os ossos dos pés por dentro a conversar com a terra. Ainda não descobri onde vou - isso é algo só visível do exterior, como um peixe transparente frente a um espelho – porra não me encontro. Porra procuro desalmadamente. Passa o comboio sem parar, por instantes sirvo-me dessa ideia para entorpecer o espírito: as ridículas tripas de fora e o sangue a jorrar. A alma a abrir o corpo de dentro para fora e os músculos torcidos pela suja passagem. Pensamento lúdico alma mais leve (por isso) mais alta no azul limpo. Azul profundo do oceano. Três minutos para enrolar um cigarro porque faz vento, outros tantos a fumar a meias com ele. Está quase. Com certeza que o futuro se há de mostrar.”
Se algum Júri deitasse mão a isto seria com certeza fatal para Holy, detectava dezenas de infracções ao código de Nebulosa mas meus olhos tinham recolhido algo mais que ainda não identificara. É como se sempre o soubesse e só agora me visse frente a frente com as palavras. Agora a existência era quase palpável. Agora as sensações ganhavam forma. O amor transcendia à sua forma mais concentrada, e na sua essência extrema e densa, aquelas palavras saltaram para a folha através de Holy, sem que fizesse por isso, da mesma forma que agora me entram pelos olhos a dentro. Holy disse-me: “…isso, deixa a tua alma respirar um pouco mais, não a soltes já, está quase.”
Estávamos a chegar perto do oceano, onde as correntes do sul nos deveriam levar onde bem entendessem e onde prosseguiríamos o nosso estudo.


Holy é denso e destilado – a forma concentrada.
Cat cintila como um quasar – um pulsar que te chama de algures.
Holy Cat é uma tenda de sonhos sem tempo de ser - um lugar de reencontro como uma ilha-infância no tempo adulto: um lugar onde pertencemos.
O silêncio. O que somos.
O palco onde a alma pode dançar a seu belo prazer.


Eu no pólo sul sob a forma de Lobo.








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